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Foto do escritorJefferson W. Santos | Ad Astra

Tudo que seu Mestre fizer..."fazeremos" todos!!





Por Jefferson Wanderley dos Santos



A vida é uma escola. As experiências que adquirimos nos momentos de nosso dia a dia fortalecem os conceitos sobre o que lemos e, eventualmente, discutimos a partir da leitura e reflexão permitidos por bons livros.


Tive sorte de, logo cedo, me atinar para isto. E o hábito de observar e, depois, acudir-me de algum livro muito me ajudou na vida e na carreira.


Das experiências mais singelas, porém marcantes, veio do dito atribuído a Confúcio "Se palavras convencem, o exemplo arrasta"!! Ou algo semelhante mas que agora não faz diferença.


Era tenente novo, "cheio de gás" e de vontade de interagir com o mundo, quiçá mudá-lo. O cenário era o meio da selva amazônica, cujo local, para minha decepção, não tinha nem índias "iracêmicas" com lábios carnudos e olhos cor de mel, tampouco aves coloridas e frutas despencando de frondosas árvores. Os habitantes, em sua maioria, eram "esmirradinhos". À exceção de alguns filhos de imigrantes da região sul, destoando das peles morenas, mas ainda assim, com as suas curtidas sob o escaldante sol que ao meio dia era muito mais quente que as praias cariocas no verão.


Esquecidos, ou sem dinheiro para voltar ao sul, lá ficaram, nas cercanias de uma irrisória cidade, Pedra Branca, no interior do Amapá AP, e ao sul da Serra do Navio, já totalmente esgotada pela subtração de minério pelos americanos... sempre tão bonzinhos!


Lá cheguei, em uma área descampada, onde havia um resto de acampamento feito por uma grande construtora que abandonara o sítio do que seria o início do último trecho brasileiro da Transamazônica.


Como cheguei na parte da tarde, após receber o "serviço" do colega anterior e estava próximo ao pôr do sol, tampouco nenhuma decolagem seria possível, passei a matar o tempo me aproximando dos nativos de um vilarejo próximo. Claro que a maioria jogava bola, mas um pequeno grupo jogava uma brincadeira que eu adorava em minha infância na Baixada Fluminense: "Seguir o Mestre".


O interessante é que ali as crianças mantiveram um hábito que eu desconhecia. A criança que seria a "carniça" para levar tapas no bumbum usava um tipo de manta. Ele imitava o "Frade distraído" que as crianças surpreendiam.


Essa representação folclórica, inserida no dia a dia das crianças da selva amazõnica, advinha do contato com membros religiosos das ordens jesuítas e franciscanas que tiveram uma presença muito intensa na Amazônia desde o reinado de Manoel III. Elas não só catequizavam como ensinavam várias atividades domésticas. Os frades eram presenças essenciais nas pequenas comunidades. Por intermédio deles a Educação se fazia presente, não só no ensino da Bíblia como também do Português, História, Geografia e outras matérias reduzidas para a construção da vida em grupo, da cidadania dos esquecidos das ínvias regiões de um país-colônia.


Tudo o que o "Seu Frade, o Mestre" fazia, era copiado. Sua preocupação com o exemplo de cidadania e religiosidade manteve, ainda que de forma incipiente, um quê de dignidade àqueles remotos e esquecidos cidadãos.


As lembranças e a imagem da brincadeira do Mestre ficaram na mente naquela noite. Ao acordar, como era o segundo mais antigo do acampamento, tomei a inciativa de interagir mais de perto com aquela comunidade.


Estávamos com restrições de diárias e o resultado era uma grave redução de auxiliares e o trabalho não era pouco. Assim, optei "resolver a parada" com os "assets" (recursos) disponíveis.


Fui confabular com minha "cadeia de valor", meus precedentes: o "Chief" da Manutenção, um Suboficial austero, gaúcho do interior, de descendência alemã e de formação luterana. Pelos predicados já dava para se vislumbrar o pouco espaço para "criatividade" e para "laissez faire". No meio da selva o que menos precisamos é de "inventores e inovadores". Se as cartilhas, normas técnicas e "cartões de inspeção" não forem seguidos à risca estávamos fritos, e o lídimo guardião de nossa segurança e certeza do retorno para casa, "andando" (WNC - Walking, not in coffin!), era o Subão, nosso "Master Chief" - nome como continha nos manuais doutrinários do Bell 205, advindos do combate no Vietnam.- Tanto melhor. O rigor e o aprendizado seriam bem consistentes.


Claro está que convencê-lo de minha "inovação" não foi fácil. Apesar de minha ascendência hierárquica, ele sabia se impor. Imagine na estrutura de seu modelo mental e "zona de conforto": Auxiliares de manutenção não só pré e adolescentes como, também, índios e imigrantes que, sequer, conseguiam falar uma frase inteira sem usarmos da "tecla SAP" do agente da Funai (como tradutor) lá destacado.


Confesso que quase desisti da ideia quando ele, nervoso e, justificadamente, apreensivo com a ideias do jovem e idealista tenente, começou a replicar em seu mais genuíno dialeto "gauchês" germânico. Pronto, arrumei uma torre de Babel no meio da Amazônia. Já me via o perfeito Indiana Jones.


Meio ressabiado vendo uma grande sacada voar selva acima, tentei argumentar e refazer meu "projeto", ao embalo de doses de Velho Barreiro. E olha que eu não bebia muito, tampouco cachaça da braba, mas ali, "in the meddle of nowhere", só mesmo a velha pinga para nos tornar imunes às dolorosas picadas dos mutuns.


Fui salvo pela famosa figura do "Cabo Véio". - "Chefe, tá comigo!"... E realmente, tava.


À noite, durante as rodadas de "sueca" com baralhos já amassados e repletos de marcas "maceteadas" visíveis até pelos anciãos, o Cabo Véio convenceu o "Subão". Maravilha, dois dias depois a garotada matuta fazia fila e formatura junto a todos nós para o hasteamento da Bandeira Nacional, no nascer do sol.


Que experiência fenomenal. Pena que não houve qualquer televisão ou repórter. Tampouco a figura dos Assistentes Sociais ou juizados de menores. Além de pouco comuns na época, impossível de estar no meio da selva. Aquilo sim foi exemplo de inclusão social, modéstia bem à parte.


Os brifins foram dados a comando do Cabo Véio tendo como auxiliares dois soldados novos. Por sorte ambos tinham pele morena curtida do sol o que facilitou a aproximação com os jovens aldeões. Assim, as orientações foram passadas, as supervisões eram constantes nos primeiros dias e depois a confiança prevaleceu sob a luz da responsabilidade de cada jovem.


Na ocasião também notei algo de pitoresco: Os imigrantes do sul eram mais sistemáticos que os nativos do norte, mas estes eram mais resistentes às intempéries, pois chovia a cântaros após um dia de calor infernal e não houve qualquer baixa entre os mestiços. Já os do sul...Cada um com sua idiossincrasia, com sua assinatura impressa em seu dna social. Sempre aprendizados.


Nosso acampamento seguiu no melhor modelo de preparação de jovens aprendizes. Eles aprenderam a sistematizar suas tarefas, a priorizar, a reconhecer a dependência do trabalho deles com relação ao anterior e a necessidade de correção, precisão e tempo oportuno para não prejudicar o colega auxiliar no setor próximo. Tudo a céu aberto. Uma oficina no meio da selva tendo o céu por abrigo e testemunha. Tirava peça, registrava. Colocava peça, registrava. Tudo na sequência, tudo limpo e arrumado.


Para minha surpresa, os garotos passaram a admirar e tentar falar igual ao "Subão". Este, por sua vez, estava já de pé antes de todos e só se retirava após todos terminarem seus setores após sua rigorosa supervisão. Para minha agradável surpresa, nenhum garoto teve que refazer qualquer atividade. Aliás, todos no acampamento nos surpreendemos com a dedicação e empenho dos jovens aprendizes.


A mesa improvisada de tonéis de combustível vazios com compensados curtidos e manchados servindo de tampão tinha ordem e limpeza. No meio da selva o Subão deixando sua assinatura. A assinatura da educação que recebera era avidamente copiada por matutos de pele curtida. Foi muito bom presenciar tal maravilhosa experiência. Lembrei das palavras de Confúcio. Quem diria. No meio da selva um show de organização e métodos. Talvez de fazer inveja, claro que guardadas as devidas proporções, ao belo e encerado piso do hangar da Helibrás em Itajubá MG.


Se teve algo gratificante logo no início de minha carreira, esse algo foi presenciar crianças sem qualquer acesso a educação de qualidade, imitando um austero e exemplar militar sob a batuta de um atento e líder servidor "Cabo Véio".


Na última tarde de minha missão dei-me ao luxo de juntar-me, no fim da tarde, a um grupo dos mesmos auxiliares. Eles estavam brincando de "Seu Mestre".


Infelizmente não mais voltei para Pedra Branca AP. Contudo fiquei acompanhando o desenrolar do "projeto". O sucesso da Escolinha do Prof Raimundo na televisão fazia-me lembrar dos jovens aprendizes. Eu havia inovado, sem querer, um projeto de "inclusão social" sem haver, sequer, naquela época, qualquer menção a tal neologismo. A ideia da "Escolinha do Subão" ia bem, de vento em popa, mesmo ele sendo substituído por outros. Contudo sem o seu "tom e toque". Recordava-me ajudando-os na limpeza e manutenção das toscas, mas funcionais, bancadas eficientes e de fazer inveja às similares das escolas técnicas Brasil a fora.


Com o advento do governo Sarney as ONG invadiram a Amazônia a pretexto de "cuidar" dos índios e o projeto RADAM "Radares da Amazônia") e, no embalo a "Escolinha do Subão", foram descontinuados. Soube da consternação geral que tomou conta daquela pequena cidade.


A tristeza abateu-me ao saber. Entretanto ficou-me a sensação de dever de cidadania cumprido e, agradavelmente, na memória a cantiga que embalava a brincadeira que me fez ter a ideia:


"Bênça que benti é o Fradi... Fradi!!

Na boca do povo... Povo!!

Tudo o que o seu Mestre fizer...

fazeremos todos!!"


"Artigo publicado no e-book "Fora do Solo", do autor.

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